"Ao Contrário das Ondas", é um romance com pouco mais de 100 páginas, intimista e ousado, sobre os sentimentos. Procura descer ao fundo da condição humana e aborda o amor, o tempo e a liberdade. Faz o ponto da situação da geração de 60 que viveu a euforia do sonho, da utopia, e hoje vive o desencanto de um tempo que sente não ser exactamente o seu tanto no país, como na esfera política e na esfera da intimidade. Ao amor, segue-se o divórcio e “os casos” que se mantêm mais para contrariar a solidão do que para sentir verdadeiramente a vida. Faz-nos reflectir sobre "o capitalismo neoliberal", e as suas teses que desenvolvem a lógica do êxito e do “rendimento” e põe em questão o futuro das sociedades actuais.
O livro estrutura-se em quatro partes. Cada uma dá voz a uma das quatro personagens principais do quadrado amoroso do romance. Três das personagens são caracterizadas com muito rigor… A quarta surge em esboço e no pensamento das outras três. Segundo o autor, "as privatizações contrariam o sistema socialista e a Democracia", cabendo aos cidadãos "fazer frente ao que parece inexorável, mesmo que para isso tenham de sofrer duras consequências", como sucede a algumas das personagens do livro. "A globalização capitalista parece hoje ser o único caminho, apesar de conduzir à desigualdade e à injustiça, mas é possível fazer-lhe frente” e o sentido do título é precisamente esse: ir contra as ondas. Neste cenário de convulsões políticas, o autor inscreveu as vivências das personagens que, no momento actual, "olham para o passado", e observam "as máscaras usadas ao longo do tempo" e o conflito que continua a instalar-se "entre as suas ambições e os seus ideais". As palavras de Urbano pintam o retrato da nossa gente, do nosso país. Reflecte-se muito neste livro o desejo de remar contra a maré, como o próprio título diz, ir
“Ao Contrário das Ondas”, e mergulhar profundamente nos sentimentos. Gostei muito da leitura deste romance pela sua actualidade e revi-me com assombro em algumas das suas páginas. A prosa de Urbano Tavares Rodrigues, um mestre, é elegante, fluente e muito segura. Ao longo de todo o romance sente-se o domínio absoluto da narrativa.
“O Lívio não gosta do quarto dela. Teve disso a prova hoje. Aliás foi um dia para esquecer.
Nunca lhe tinha feito qualquer crítica ao estilo
rocaille do mobiliário nem aos tons de rosa da decoração e da cama, da colcha, tudo muito vaporoso, muito doce. E ontem, de repente, tinham feito amor, estava Mafalda a repousar nos braços dele, numa posição cinematográfica, saboreando aquele cansaço ainda voluptuoso, e o Lívio (só decorreram uns instantes), como se nada se tivesse passado e nada sentisse, pergunta-lhe:
- Quem é que te deu a ideia de decorar assim esta alcova… tão mimosa?
Soou-lhe como ele lhe dissesse: “Isto parece um quarto de puta.”
- São gostos, Lívio. Eu gosto, tu não gostas, pronto.
- Não é que não goste, mas prefiro decorações mais sóbrias.
- Achas
Kitsch?
- Talvez. O
Kitsch também tem o seu encanto. Mas não condiz com a tua personalidade.
- Tens a certeza? Às vezes penso que não me conheces, apesar de tantos anos de convívio.
Estava já quase abespinhada.
Ele mudou de tom.
- Pode ser que tenhas razão.
Resolveu castigá-lo com um silêncio magoado.
O Lívio preferia a primeira casa que ela teve na Graça, que ficava numa rua do género provinciano, lojas pequeninas, retrosarias, ferragens, artigos eléctricos, uma barbearia inverosímil com espelhos dourados, cheios de sujidade, inclusive de moscas (mas achavam-na digna de ser filmada como relíquia) e até vivendas, que eram de vez em quando assaltadas. É certo que tinha vistas cheias de luz sobre a encosta da cidade antiga, de um lado até ao Hospital de S. José e ao vale do Rossio, cintilante na estátua e nas mansardas, e do outro lado as ruínas do Carmo. Muitas noites iam para a varanda e olhavam o reflexo nas janelas, a harmonia pombalina da Baixa.”
In
“AO CONTRÁRIO DAS ONDAS”, Urbano Tavares Rodrigues, Publicações D. Quixote, Novembro de 2006, pág 64/65 de 125