A Carlota, minha colega e amiga desde o Jardim Escola João de Deus, preparou-me para o contacto com o cheiro a formol, os cadáveres, as peças dissecadas que nos rodeavam pelos corredores, numa visita guiada pelo Teatro Anatómico, ainda antes do início das aulas. Avisou-me da “dureza” dos assistentes, das suas “piadinhas” iniciais, para nos colocarem desde o primeiro dia à prova, e nos aconselharem a mudar de curso se fizéssemos o género “flores de cheiro”… Havia que ser forte, desde pequena que queria ser médica… A Carlota já frequentava o 2ºano e era a minha “tutora”… Vendeu-me o esqueleto. Era essencial ter um em casa para o estudar… osso por osso… Para o próximo ano vendia-o eu… era este o ciclo, que se repetia há anos… Confesso que no dia em que o trouxe muito bem acondicionado numa caixa de papelão, e em que pela primeira vez lhe toquei, senti um certo arrepio de emoção, e não me atrevi a viajar de eléctrico, com medo de nalgum solavanco a caixa cair, e os ossos se espalharem… Se eu ainda estava emocionada, como reagir aos olhares de espanto que me envolveriam numa situação dessas? Fiz pois a pé o percurso da Rotunda da Boavista à Rua de Sá da Bandeira, onde vivia na época, segurando a caixa com força contra o peito, enquanto agradecia ao dono das ossadas, a possibilidade de me servir por um ano, de objecto de estudo.
O grupo de aulas práticas era simpático, os rapazes camaradas, e o assistente, um bonito e elegante homem muito cordial, mas sem grandes intimidades. As suas aulas eram interessantes, mas sempre com o aviso que não suportaria qualquer crise de histeria por parte de alguma das senhoras, se acaso fossem vitimas das costumadas brincadeiras por parte dos “machos” mais velhos do curso, principalmente na época da praxe, (um dedo ou qualquer outra pequena “peça” anatómica nos bolsos das batas). Desde Março, e por indicação do Vasco, um amigo que frequentava Arquitectura em Belas-Artes, em casa de quem almoçava à quarta-feira, passei a visitar o Zé, internado sob prisão, em Traumatologia no piso 7. Sofrera um aparatoso acidente de viação no final de Janeiro, quando a PIDE perseguiu o carro em que transportava propaganda política. Fractura do fémur, que obrigou ao internamento no hospital da Faculdade, impedido de visitas, e guarda à porta… “Podias ir visita-lo, vocês circulam livremente, e de bata vestida, ninguém te impedirá de o veres e levar esta ou aquela encomenda.”
Lá ia vê-lo semanalmente, e dividia as visitas com a Carlota, a Chinha e a Fáfá. Sempre de bata, entravamos com o ar de sermos mais um dos médicos do serviço… Um dia disse-me ser um rapaz de sorte… quatro “beldades” a visitá-lo à vez por conta da PIDE, não era para todos… Naquele dia quente de Abril, o Zé estava tristonho, e quando lhe perguntei o porquê contou-me que desde o princípio do internamento, todos os doentes que partilhavam com ele a enfermaria (de duas camas) ao fim de uma semana por este ou aquele motivo, acabavam por morrer… Habitualmente eram doentes idosos mas naquele dia, estava muito preocupado porque o companheiro de quarto tinha a sua idade, 18 anos, e fora para o Bloco Operatório para lhe ser amputado pela anca o membro inferior direito pois a tíbia, tinha um tumor ósseo. Lá o consolei como sabia, e era muito pouco na época, e quando olhei o relógio, despedi-me de modo apressado:
“Até para a semana Zé, tenho aula prática de Anatomia às duas, e já só falta um quarto de hora, quero chegar mais cedo!”
“Até para a semana Papoila, obrigado, és um amor, todas as semanas vens ver-me!”
“Deixa-te disso, Zé! Não tens nada a agradecer! Até para a semana!”
Corri escada abaixo até ao piso 0, para dar a volta pelo jardim, e subir as escadas até ao Teatro Anatómico…Safa! Estava quente aquela tarde! Entrei esbaforida na sala de preparação onde ia ser dada a aula e para meu sossego, o Dr. Costa ainda não tinha chegado. Aproximei-me do grupo de colegas que rodeava a mesa de trabalho em que o preparador, colocava um membro inferior direito enquanto dizia:
“Estão a ver este? É para a aula de hoje. Está fresquinho, acabado de sair do bloco… Estão a ver porquê? Isto aqui é um tumor ósseo, tiveram de lhe amputar o membro pela anca, um rapaz novo, não tem mais de 18 anos… Não o estraguem muito durante a aula, porque o joelho está muito bom, e pretendo dissecá-lo! Ainda me vão dar um bom dinheirinho por ele…”
Não ouvi mais nada… Acordei, com o Dr. Costa a bater-me suavemente na face enquanto ouvia ao longe:
“Minha senhora, então? Minha senhora, então?”
Estava deitada num dos sofás da sala dos assistentes, que se situava no piso -1, com as pernas sobre um dos braços e a cabeça deitada no assento. Quando olhei o Dr. Costa desatei num pranto convulsivo e só repetia:
“Eu conheço a história daquela perna! Eu conheço a história daquela perna! Como vim aqui parar? Que estou a fazer aqui? Eu conheço a história daquela perna!”
“Vá lá acalme-se, e conte-me o que se passou, pregou-nos um grande susto…está sem sentidos há quatro minutos, e tivemos de a trazer ao colo até cá abaixo. O Manel do bar vai trazer-lhe um chá, mas primeiro vai contar-me o que se passou!”
Enquanto enxugava as lágrimas e limpava o nariz ao lenço que gentilmente me cedera, contei-lhe entre soluços que tinha ouvido a história do membro amputado pouco antes do início da aula, e não podia suportar a ideia de ver a perna, sem conhecer o dono, e ainda mais ter ouvido que se podia ganhar bom dinheiro com a preparação de um joelho de alguém que estava vivo, e amputado.
“O Sr. Dr. desculpe-me! E tiveram de trazer-me ao colo! Que vergonha!”, enquanto esperava o “ralhete” que iria seguir-se…
O Dr. Costa endireitou-se, enquanto me dizia.
“ Compreendo o que está a sentir, hoje está dispensada das aulas, depois de tomar o chá pode ir para casa, garanto-lhe que ninguém vai preparar o joelho, mas na próxima aula vou perguntar-lhe onde se inserem todos os músculos na zona e todos os elementos que o constituem. Agora vou para cima, dar a aula aos seus colegas, e dizer-lhes que está bem! Até à próxima aula!”
Na aula seguinte, lá fui eu ao cadáver fazer a demonstração da sessão anterior, e não me portei mal… Não voltei a visitar o Zé! O Vasco, a Carlota, a Fáfá e a Chinha bem insistiram, mas eu só dizia:
“Não sou capaz de olhar o rapaz de quem conheci primeiro o membro amputado!”
Há uns meses na consulta de reforço, recebi um doente sem médico de família, com uma prótese total do membro inferior direito, que me contou que aos 18 anos fora amputado por um cancro ósseo da tíbia. Após a operação no hospital da Universidade, tinha sido internado em Alcoitão e recuperara na totalidade. Estava simplesmente engripado, e queria fazer exames de rotina para saber se tudo estava bem! Olhava-o de tal modo surpresa que me perguntou:
“Está a sentir-se bem Drª? Está a ficar tão pálida, precisa que chame alguém?”
Atrapalhada pela preocupação que estava a provocar ao doente que me procurava pela primeira vez, contei-lhe a história de uma outra amputação na mesma época da sua… Não era outra, era ele mesmo… e ainda se encontrava com o Zé pois ficaram amigos! Há dias eu a Carlota o Zé e Hugo (chama-se assim o dono da perna) fomos tomar café juntos! O Vasco, um arquitecto de nome, agora professor, não pode estar presente, mas telefonou-nos!
Um dia destes vamos jantar todos juntos.
BEIJO MEU PARA TI!
BEIJOS!!!