quarta-feira, novembro 01, 2006

O Outro Pé da Sereia, leitura de Novembro


Viagens diversas cruzam-se neste romance: a de D. Gonçalo da Silveira, a de Mwadia Malunga e a de um casal de afro-americanos. O missionário português persegue o inatingível sonho de um continente convertido, a jovem Mwadia cumpre o impossível regresso à infância e os afro-americanos seguem a miragem do reencontro com um lugar encantado.
Outras personagens atravessam séculos e distâncias… O escravo Nimi, à procura das areias brancas da sua roubada origem. A própria estátua de Nossa Senhora, viajando de Goa para África, transita da religião dos céus para o sagrado das águas.
E toda uma aldeia chamada Vila Longe atravessa os territórios do sonho, para além das fronteiras da geografia e da vida.
Estas diferentes viagens entrecruzam-se no último romance de Mia Couto. Uma narrativa mágica cheia de mistério na sua escrita, verdadeira prosa poética.

António Emílio Leite Couto, de pseudónimo literário Mia Couto, nasceu na Beira a segunda cidade de Moçambique, em 5 de Julho de 1955. O seu irmão mais novo, não conseguia dizer "Emílio" e chamava-lhe Mia. Segundo o próprio autor, a utilização desta alcunha tem a ver com a sua paixão pelos gatos. Desde pequeno dizia a sua família que queria ser um deles.
Iniciou o curso de Medicina ao mesmo tempo que se iniciava no jornalismo e abandonou aquele curso para se dedicar a tempo inteiro à segunda ocupação. Foi director da Agência de Informação de Moçambique, e mais tarde tirou o curso de Biologia.
Como escritor, Mia Couto possui uma obra reconhecida internacionalmente que foi já adaptada ao cinema e ao teatro e está representada em várias antologias, tendo sido também objecto de vários estudos. A sua escrita espelha um maravilhoso universo ficcional, intensamente ligado à cultura e imaginário moçambicanos e aos mitos rurais e urbanos que, sustentados em formas de arte verbal da oralidade popular, fazem deste escritor um contador de histórias único.
O Outro Pé da Sereia, foi apresentado pelo autor em diversos localidades em Portugal no mês de Maio, no Brasil em Junho, onde foi entrevistado por vários órgãos da comunicação social e em Luanda em Julho.


“— Acabei de enterrar uma estrela!
Foi assim que o pastor Zero Madzero se anunciou junto à cama de sua esposa, Mwadia Malunga. Lá fora, espreitavam os primeiros sinais de luz. A mulher, ainda emergindo do sono, sorriu e disse:
Venha, marido, venha que eu lhe apronto um bom banho.
Olhou o homem em contraluz: parecia um fantasma, magro e sujo, carregando mais poeira que o vento do Norte. Um cheiro a queimado se espalhou na ensonada claridade do quarto.
Trouxe os burros?
Ele acenou com a cabeça, como se estivesse bêbado. Quando Mwadia se aprontava para o encaminhar por entre as penumbras, o pastor deu um passo atrás e murmurou:
Não me toque! Não me toque que tenho as mãos em fogo.
Só então a esposa reparou no brilho que emanava das mãos fechadas de Madzero. Lentamente, ele entreabriu os dedos, um por um, como se desfolhasse uma flor. Mwadia Malunga levou o braço ao rosto, incapaz de enfrentar a reverberação. A sua voz esgueirou-se num gemido:
Meu marido, me confesse: você já morreu?
— Não, tudo isto vem da estrela, mulher.
— Mas qual estrela?
— A estrela que enterrei no nosso quintal.
Mwadia espreitou, receosa, pela janela. O amanhecer costumava ser um beijo no vidro de sua casa. Naquela manhã, porém, a luz era mais tensa que intensa. Foi então que ela viu a pá, espetada junto um amontoado de areia. Enterrada na vertical, cumpria o serviço de cruz em campa rasa.
Saiu para o pátio, o marido seguindo-a em passos sonâmbulos. Em redor do tambor de água, ela juntou umas tantas latas enquanto o homem se ia despindo. Tinha sido sempre assim: o pastor recusava banhar-se sozinho. Um homem fica menos macho se passeia as mãos pelo seu próprio corpo. Era essa a crença de Zero Madzero. A esposa fazia de conta que acreditava.
Desta vez, como sempre acontecia, manchas de sangue iriam sujar a água que restava do banho. Ela nunca lhe perguntou porquê. A um homem não se perguntam certas coisas. Também ela, quando saltava a lua e lhe vinham os sangues, gostava de ser guardada em silêncio. Uma esteira diferente à entrada da porta: era o que bastava para Zero saber que esses eram dias interditos.”

In “O Outro Pé da Sereia”, Mia Couto; Editorial Caminho, SA Lisboa 2006 (pag 17/18 de 382)
BEIJOS A TODOS! E UM ESPECIAL PARA TI! BOA LEITURA!

1 comentário:

Anónimo disse...

Hoje apeteceu-me vir aqui, bem ao inicio. Valeu apena encontrar excerto de O Outro Pé da Sereia. Adorei este texto e o livro tb.
Adoro Mia Couto.