segunda-feira, dezembro 18, 2006

Um Natal em Angola... III


Seu marido saiu para o quartel e levou a marmita para que o impedido trouxesse a refeição. Maria ficou em casa a desfazer as malas e a arrumar os poucos livros e as cassetes que levara. Ouviu bater à porta, abriu-a e um velho negro com um prato cheio de fruta… bananas, laranjas e mangas, estendeu-lho e disse:
“São para sinhora e minina doutor muito amigo de Malungo! Sinhora e minina precisam de fruta.” Vinha acompanhado por um jovem que não aparentava mais de 12 anos e acrescentou:
“António, meu filho, disse que quer trabalhar para sinhora e sinhora precisa, para lavar e passar a roupa e tomar conta minina Todas sinhoras tem de ter mainato Ele combina com sinhora eu vou na bic ao laranjal.”
E apesar de repetidamente afiançar ao rapazinho simpático que não precisava de ninguém para a ajudar, nada o demoveu e acabou por combinar um pagamento que mais tarde provocou polémica entre as “esposas” por ser o dobro do que recebiam os outros rapazinhos… Exprimia-se num português fluente e pediu para ler todos os jornais que Maria levara… Iam entender-se naquela temporada. Quando seu marido chegou já os três montavam no chão um dos puzzles que ele possuía. Não se mostrou admirado e disse:
“Já cá estás António? Eu bem te disse que convencias mais depressa a senhora que eu próprio…”
“António é um bom menino, o padre Zé ensinou-o a ler e ele aprende tudo enquanto o diabo esfrega um olho… Vai dar-te uma boa ajuda minha querida.”
À tardinha o céu carregou-se de nuvens e começava a chover torrencialmente. Maria encantada aspirava o aroma quente da terra molhada quando o padre Zé entrou…A porta estava sempre aberta durante o dia.
“Disse que passava por cá mais tarde e aqui estou! Já disseste alguma coisa à tua mulher ou sou eu a falar com ela?”
Maria começou a ficar intrigada e rindo perguntou:
“Mas vocês explicam-me o que se passa? Vocês combinaram tudo e estão à espera que eu colabore em quê? Que suspense!”
O padre Zé preocupado com a situação de carência que se vivia no quartel e na sanzala estava a levar em conjunto com seu marido uma campanha de vacinação e esclarecimento alimentar. O seu marido tinha o tempo muito ocupado pois deslocava-se a outros três aquartelamentos: ao Loge em coluna militar, e de avioneta ao Bembe e a outra localidade na costa que nunca aprendeu o nome, para prestar cuidados médicos. Os dois tinham pensado que nesse mês podiam contar com a ajuda de Maria nesse trabalho… António protegido do padre Zé seria o elo de ligação porque falava correctamente português e tinha o encargo de cuidar da menina enquanto Maria fizesse a consulta na sacristia da pequena capela da sanzala.
Maria olhou-os fixamente e com uma gargalhada disse:
Mereciam que eu vos ralhasse mas sabem que sou incapaz de dizer que não a um projecto desses… Fica no entanto bem claro que eu ainda não sou médica e há coisas que não me atrevo a decidir sozinha… Por isso, senhor alferes miliciano médico meu marido, tem de estar disponível para os casos que lhe enviar… É para começar amanhã?”
“Nós sabíamos que essa ia ser a resposta. Pessoalmente fico-te muito grato!” retorquiu o padre Zé. “Outro assunto, achas que a Iria tem a criança antes do Natal? O meu maior desejo é que isso aconteça para o baptizar na missa do galo! E se isso acontecer, quero-vos na missa!”
“Isso não prometo! Se já sabes assim tanto de mim, deves saber também que não sou de missas…”, respondeu Maria.
“Tudo me leva a crer que sim, que nasce por estes dias”, respondeu seu marido.
Quando se despediu Maria quis saber que nascimento era aquele tão desejado pelo padre, e ficou emocionada quando seu marido lhe contou que Iria era uma jovem negra da sanzala que engravidara de um dos soldados. Pediram ao padre Zé que os casasse e viviam na primeira casinha junto à capela da sanzala.
“Mas ele é negro também?” perguntou Maria.
“Não, é de Vila Real!” respondeu o marido.
No dia seguinte o jantar foi mais uma vez esparguete com atum, era a terceira refeição que Maria fazia no Toto e começou a perceber porque seu marido estava tão magro. Não conseguiria repetir muito mais vezes aquela ementa, bem teriam todos de comer papas Nestum, fruta e leite.
Depois de tudo arrumado seu marido disse-lhe.
“Vou até à enfermaria, parece que a Iria está com dores e tenho de a observar, se me demorar mais é porque está em trabalho de parto. Até logo!”, despediram-se com um terno beijo.
Já estava deitada quando ouviu bater à porta e alguém chamava aflito: “Senhora doutora! Senhora doutora!”
Quando abriu o soldado maqueiro com uma certa preocupação disse-lhe:
“O nosso alferes pede que a senhora doutora o vá ajudar à enfermaria porque o senhor padre Zé perdeu os sentidos e a Iria está a dar à luz!”
“É só mudar de roupa e vou, mas a menina está a dormir, e eu não a deixo aqui sozinha!”
“A senhora doutora não se preocupe, a menina vai ao meu colo e deitamo-la lá. Nem vai acordar!”
Chegados à enfermaria deitaram a menina numa caminha à entrada da sala de partos e assim que ela entrou seu marido disse-lhe:
“Vê o que se passa com o Zé! Quis assistir ao parto e desmaiou está ali deitado e eu não posso cuidar dele. A Iria está em período expulsivo e o bebé nasce a qualquer momento.”
” E tu deixaste o Zé assistir ao parto? Um parto é violento, é natural que tenha desmaiado, deve ser uma quebra de tensão e açúcar porque aqui come-se muito mal.”
As suas suspeitas confirmaram-se e depois de o reanimar o padre Zé, Maria repreendeu-o por ir assistir ao parto. Conversavam quando se ouviu o primeiro choro e ambos correram para ver o recém-nascido que era um lindo e forte rapaz de tez clara. Emocionados deram os parabéns ao pai e dirigiram-se à mãe para a felicitar também.
Em breve chegou a Ceia de Natal que foi na messe de oficiais em confraternização com os militares e as poucas mulheres e crianças que os acompanhavam. A ceia foi frugal e como única sobremesa um prato de leite creme e uma rodela de abacaxi, mas viveu-se o espírito de Natal em família alargada. Preparavam-se para seguir para a missa e Maria seu marido e a menina despediram-se e dirigiram-se para sua casa. Aí chegados, sentaram-se a ouvir música. Maria ouviu ao longe o sino da igrejinha a tocar. O padre Zé tinha-lhe pedido mais uma vez que fossem à missa pois ia celebrar o baptismo do bebé que tinha nascido há uma semana.
Maria levantou-se e disse decidida.
”Vamos à missa! O Zé faz tanta questão e mal não nos vai fazer nenhum. Ele é um padre progressista, está de castigo por aqui há mais de quatro anos pelas suas atitudes. Acabo por ser mais sectária se não for à missa… Vamos embora!”
Seu marido que tinha uma educação católica ficou satisfeito com a decisão e chegados à Igreja foram para a primeira fila.
A missa decorreu sem que Maria prestasse grande atenção até ao momento da homilia… Ouvia com atenção as palavras do padre Zé que com dotes de oratória invulgar e emocionante começou a comparar o significado de estar a baptizar uma criança nascida em teatro de guerra filha de um soldado e de uma natural que se tinham enamorado e casado. Comparava esse nascimento com o menino que nascera em Belém cerca de 2000 anos antes para que os homens vivessem em paz e unidos pelo amor fraternal. Maria olhava-o com admiração e preocupação porque no seu entusiasmo o padre estava a colocar-se em risco. Se continuasse naquele tom ia arriscar-se a ser preso e castigado como já lhe tinha acontecido noutros quartéis.
Neste momento a sua menina que fizera anos a 27 de Novembro perguntou:
“Mamã isto é uma festa?”
“Sim minha querida é uma festa!”
“Posso cantar os parabéns a você?”
“Podes sim meu amor…”
A menina da primeira fila começou a entoar alto:
“Parabéns a você…”
Nesse momento o Padre Zé que já “voava” por divagações que Maria já nem ouvia angustiada, com receio de o ver preso suspendeu a oratória, olhou-as e disse.
“Isso minha menina estamos aqui reunidos para comemorar o nascimento de Jesus, saudemo-lo pois cantando a uma sua voz… Parabéns a você!”
Maria não conseguiu conter as lágrimas quando naquela igreja perdida no mato todos festejaram o nascimento do Menino Jesus com os “Parabéns a você!”... Nesse ano foi o cântico de Natal mais apropriado à celebração do seu nascimento...





FELIZ NATAL
BEIJOS!

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