sábado, março 18, 2006

O dia 18 de Março....


O meu avô Eduardo (1879-1960) e meu pai o seu filho Osvaldo (1913-1951) nasceram a 18 de Março... Como forma de os homenagear, resolvi publicar hoje uma carta de meu avô a minha avó das linhas da frente durante a I Grande Guerra, onde combateu como médico, e veio a receber a Cruz de Guerra. Um dia por coincidência encontrei o seu capacete, que guardo em minha casa. O Mauro Maia,do blog *Cognosco* nos comentários do seu artigo Pacis Nox que merece a vossa visita, sugeriu-me que o fizesse.

Bois de Nieppe – Pont de Pendus
29 de Agosto de 1918 às 23h

Escrevo-te, minha querida mulher, depois de um dia passado no meio do horror da guerra, sentindo-a bem de perto, esta alucinação trágica - mas admirável! – em que a humanidade se lançou. Daqui, do meu abrigo, eu vejo o incêndio fantástico de Estaires e da La Gorge, duas terras que já foram nossas e que hoje o boche, ao abandonar arrasa. Junto ao incêndio, o ruído brutal das peças de 38, ao som das quais eu tenho dormido os melhores sonos, nesta santa terra de França! No meio destes dias agitados, eu tenho gozado de uma saúde admirável; sinto-me com uma resistência física que não tinha. Faço os meus trinta quilómetros a cavalo, e fico óptimo.
Hoje de manhã fui de visita aos locais onde trabalham os batalhões; locais que ainda há poucos dias eram as primeiras linhas boches; tu não podes imaginar o que é um campo de batalha abandonado! É preciso vê-lo, calcar aquela terra barrenta, argila pura, onde se escorrega a todos os instantes, pegajosa, lamacenta onde se enterram até ao joelho estas botifarras enormes, que o inglês prático fabrica e que fazem dos meus pés – tu lembras-te como eles são pequenos! – duas arcas da Aliança! Percorri as trincheiras, entrei nos abrigos onde tantas tragédias se devem ter passado. Ainda há por lá cadáveres de boches insepultos; junto à cabeça pousa o capacete de um e, um pouco mais adiante, um tronco com a farda envergada ainda, está numa disposição que a gente diria que toma a sentinela vigilante da trincheira. A tragédia desta luta! Duas cruzes invocando Deus indicam as sepulturas, cavadas na no man´s land (terra de ninguém, terreno entre trincheiras), de dois oficiais alemães. É neste local que hoje os nossos soldados estavam colocando arame farpado para defesas que podem vir a ser precisas; quem pode prever a sequência da guerra e o inglês tem a preocupação do arame e da defesa! Quando desta visita, um aeroplano boche procurava atravessar as linhas; os tiros anti-aéreos fizeram uma tal barragem que o boche voltou em marcha vertiginosa para o seu local. E foi pouco depois que na 1ª linha começou a aparecer uma fumarada densíssima, erguendo-se para o céu como gigantescas árvores e que eram o anúncio deste formidável incêndio que a imaginação de Nero não sonhou, mas que o Kaiser, na sua vertigem de perdido, supõe virá alterar esta impassibilidade fria, que dá a certeza da vitória, ainda que com o sacrifício da mocidade admirável do tempo de hoje, dos rapazes até aos 26 anos, que – cantando ainda! – se sacrificam para ditar melhores dias ao mundo! As notícias da guerra são óptimas. Os aliados estão de cima, são eles agora que têm em suas mãos os destinos da guerra: a Alemanha será vencida! Oh! A cara que farão estes parlapatas, que na sua impotência se embasbacam perante a força do alemão!
O que fere a minha alma é ver que o nosso esforço militar não é o que já foi! Como acção guerreira, estamos limitados à da nossa artilharia; são esses bravos rapazes, tanto oficiais como soldados que aqui nos garantem. As tropas de infantaria estão fatigadas, esgotadas e hoje empregadas somente em trabalhos de segunda linha: fortificações, caminhos de ferro, trabalhos agrícolas, etc. Estive aqui hoje com o coronel Ivens Ferraz, o qual com o general Rosado foi a Inglaterra. Disse-me ele que ficou resolvido o problema dos transportes, e que só falta que venham homens. Estes virão? É a pergunta que fazem todos os patriotas. Se é certo que o moral da infantaria se tem levantado à medida que vêm para a frente, a verdade é que eu julgo que ela tem muito apoucadas as suas qualidades combativas: já não são os soldados que foram: são 16 meses passados na tormenta, longe da terra, sem uma licença! Gritem isto a todas as horas; gritem bem alto que não vir gente representa o maior crime da nossa história nacional. O general Rosado é homem de prestígio; foi substituir o Tamagnini, que pouco vale. Mas não é só preciso o general: homens, homens, muitos, todos os que puderem vir, para substituir todos aqueles que têm ganho já o direito de ir à terra da Pátria! Lê esta carta ao meu pai; ele que a mostre ao Marques Guedes e ao nosso Guedes de Oliveira. Eles que todos os dias insistam nesta campanha moral, patriótica, dignificadora da nossa Honra: a reorganização do nosso C.E.P. Eu sei que é preciso resolver o problema interno; estou certo que só da resolução deste poderá dar-se solução honrosa à nossa vida internacional. Mas se há a possibilidade de vir gente, mesmo mandada pelos doidos maus que nos governam, liquidemos as contas no final! Se não há, então, usando de todas as armas arrase-se a montureira que dirige os destinos da Pátria. Quando penso, Ernestina, que vim para aqui, em grande parte pelo amor aos meus filhos, para lhes preparar melhores dias do que aqueles que eu gozei e que tudo pode perder-se, sinto dentro de mim um verdadeiro ódio contra aqueles que de assalto governam o país, só com a mira na miséria do mando!
Mas minha querida, isto já nem é uma carta; é quase um artigo de fundo! Está perfeitamente tranquila comigo. Óptimo de saúde e, posso dizer, sem risco. Excelente disposição de espírito, que só é quebrada com a leitura dos nossos jornais. A guerra ganha – pela força das armas e pela força moral dos aliados. É possível que antes de ir para a ambulância do Francisco vá para o 3º Grupo de Baterias de Artilharia, que tem por comandante o tenente-coronel Maia Pinto, que me quer muito lá. Comigo aí, não contes antes do Natal; dá-te por feliz se conseguir licença nessa data. Conto que estejas a partir para o Salgueiro. Dá ao Belarmino e às queridas amigas D. Retoca e D. Estela afectuosos abraços: Diz-lhes que não os esqueço nunca. Quase não tenho tempo para nada. Tenho sobre os meus ombros responsabilidades grandes; a brigada está agora organizada, mas os serviços de fiscalização (e eu vou a toda a parte) roubam-me todo o dia; à noite vem uma fadiga que me faz dormir oito horas de um só sono. Uma delícia!
Passando para a artilharia ou ainda para a ambulância – o que deve ser breve – modificam muito, então, as minhas preocupações e escreverei a miúdo.
Dá muitos beijos aos nossos filhinhos, muitos e muitos. Abraços ao meu Pai – de quem já recebi uma grande carta! – à Mãe ao Artur. Beijos às minhas irmãs. Beija-te muitas vezes
o teu do coração
Eduardo

P.S. Diz ao meu pai que o meu nome nunca deve ser citado. Nem eu o quero nem o permitem os regulamentos. Da verdade dos factos que aponto podem usar; do meu nome, não. Esta carta é levada por um camarada meu.
Eduardo

Beijos

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