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Só bem depois de me retirar das pescarias é que dei por mim a encostar desejos na vizinha. Comecei por cartas, mensagens à distância. À custa de minhas insistências namoradeiras, Luarmina já aprendera as mil defesas. Ela sempre me desfazia os favores, negando-se.
- Me deixa sossegada, Zeca. Não vê eu já não desengomo lençol?
- Que ideia D. vizinha?! Quem lhe disse que eu tinha essa intenção?
Todavia ela tem razão. Minhas visitas são para lhe caçar um descuido na existência, beliscar-lhe uma ternura. Só sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela, arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto sempre ao lugar dela.
- Dona Luarmina, o que é isso? Parece ficou mesmo freira. Um dia quando o amor lhe chegar, você nem o vai reconhecer…
- Deixe-me, Zeca. Eu sou velha, só preciso é um ombro.
Confirmando esse atestado de inutensílio, ela esfrega os joelhos como se fossem eles os culpados do seu cansaço. As pernas dela, da maneira como incham, dificultam as vias do sangue. Lhe icebergam os pés, a gente toca e são blocos de gelo. E ela sempre se queixa. Um dia, aproveitei para me oferecer:
- Quer que lhe aqueça os pés?
Arrepiando expectativa, ela aceitou. Até eu fiquei assim, meio desfisgado, o coração atropelando o peito.
- Me aquece, Zeca?
- Sim, aqueço mas… pela parte de dentro.
Tentava um deslize na defesa dela. Mas levei tampa. Eu estava como essoutro que vai lavar a mão e sujou o sabão, ou aquele que queria acertar a unha e cortou o dedo. Com esta minha idade eu já devia conhecer os devido procedimentos, as delicadas tácticas de abordagem. Mas não. Meu falecido avô sempre dizia:
- Em novos só nos ensinam o que não serve. Em velhos só aprendemos o que não presta.
Mas é pena eu e a vizinha não nos simetricarmos. Porque ambos somos semiviúvos: nunca tivemos companheiro, mas esse parceiro, mesmo assim, desapareceu. Sou mais novo que ela, mas estamos ambos na encosta de lá em que a vida só mexe quando é a descer.
Hoje sei como se mede a verdadeira idade: vamos ficando velhos quando não fazemos novos amigos. Estamos morrendo a partir do momento em que não mais nos apaixonamos.
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In “Mar me quer” Mia Couto com Ilustrações de João Nasi Pereira, Editorial Caminho, SA, Lisboa 2000.
António Emílio Leite Couto, de pseudónimo literário Mia Couto, nasceu na Beira a segunda cidade de Moçambique, a 5 de Julho de 1955. O seu irmão mais novo, não conseguia dizer "Emílio" e chamava - lhe Mia . Iniciou o curso de Medicina ao mesmo tempo que se iniciava no jornalismo e abandonou aquele curso para se dedicar a tempo inteiro à segunda ocupação. Foi director da Agência de Informação de Moçambique, e mais tarde tirou o curso de Biologia.
Enquanto escritor, Mia Couto possui uma obra reconhecida internacionalmente, traduzida em várias linguas e já adaptada ao cinema e ao teatro. Está representada em várias antologias, e já foi objecto de vários estudos. A sua escrita espelha um maravilhoso universo ficcional, intensamente ligado à cultura e imaginário moçambicanos e seus mitos rurais e urbanos que, sustentados em formas de arte verbal da oralidade popular, fazem deste escritor um contador de histórias único. Este conto foi lançado em 1998, no Pavilhão de Moçambique na EXPO. Pode ler mais sobre este autor aqui
BEIJOS
Só bem depois de me retirar das pescarias é que dei por mim a encostar desejos na vizinha. Comecei por cartas, mensagens à distância. À custa de minhas insistências namoradeiras, Luarmina já aprendera as mil defesas. Ela sempre me desfazia os favores, negando-se.
- Me deixa sossegada, Zeca. Não vê eu já não desengomo lençol?
- Que ideia D. vizinha?! Quem lhe disse que eu tinha essa intenção?
Todavia ela tem razão. Minhas visitas são para lhe caçar um descuido na existência, beliscar-lhe uma ternura. Só sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela, arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto sempre ao lugar dela.
- Dona Luarmina, o que é isso? Parece ficou mesmo freira. Um dia quando o amor lhe chegar, você nem o vai reconhecer…
- Deixe-me, Zeca. Eu sou velha, só preciso é um ombro.
Confirmando esse atestado de inutensílio, ela esfrega os joelhos como se fossem eles os culpados do seu cansaço. As pernas dela, da maneira como incham, dificultam as vias do sangue. Lhe icebergam os pés, a gente toca e são blocos de gelo. E ela sempre se queixa. Um dia, aproveitei para me oferecer:
- Quer que lhe aqueça os pés?
Arrepiando expectativa, ela aceitou. Até eu fiquei assim, meio desfisgado, o coração atropelando o peito.
- Me aquece, Zeca?
- Sim, aqueço mas… pela parte de dentro.
Tentava um deslize na defesa dela. Mas levei tampa. Eu estava como essoutro que vai lavar a mão e sujou o sabão, ou aquele que queria acertar a unha e cortou o dedo. Com esta minha idade eu já devia conhecer os devido procedimentos, as delicadas tácticas de abordagem. Mas não. Meu falecido avô sempre dizia:
- Em novos só nos ensinam o que não serve. Em velhos só aprendemos o que não presta.
Mas é pena eu e a vizinha não nos simetricarmos. Porque ambos somos semiviúvos: nunca tivemos companheiro, mas esse parceiro, mesmo assim, desapareceu. Sou mais novo que ela, mas estamos ambos na encosta de lá em que a vida só mexe quando é a descer.
Hoje sei como se mede a verdadeira idade: vamos ficando velhos quando não fazemos novos amigos. Estamos morrendo a partir do momento em que não mais nos apaixonamos.
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In “Mar me quer” Mia Couto com Ilustrações de João Nasi Pereira, Editorial Caminho, SA, Lisboa 2000.
António Emílio Leite Couto, de pseudónimo literário Mia Couto, nasceu na Beira a segunda cidade de Moçambique, a 5 de Julho de 1955. O seu irmão mais novo, não conseguia dizer "Emílio" e chamava - lhe Mia . Iniciou o curso de Medicina ao mesmo tempo que se iniciava no jornalismo e abandonou aquele curso para se dedicar a tempo inteiro à segunda ocupação. Foi director da Agência de Informação de Moçambique, e mais tarde tirou o curso de Biologia.
Enquanto escritor, Mia Couto possui uma obra reconhecida internacionalmente, traduzida em várias linguas e já adaptada ao cinema e ao teatro. Está representada em várias antologias, e já foi objecto de vários estudos. A sua escrita espelha um maravilhoso universo ficcional, intensamente ligado à cultura e imaginário moçambicanos e seus mitos rurais e urbanos que, sustentados em formas de arte verbal da oralidade popular, fazem deste escritor um contador de histórias único. Este conto foi lançado em 1998, no Pavilhão de Moçambique na EXPO. Pode ler mais sobre este autor aqui
BEIJOS
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